A cobertura de 77% contra a poliomielite indica que praticamente um em cada quatro bebês não tomou essa vacina em 2022 no Brasil – uma proporção bem distante do objetivo de 95%. Já a meta alcançada de vacinar 90% dos bebês com a BCG, apesar de ser um dado positivo, ainda indica que uma em cada dez não recebeu essa importante proteção contra a tuberculose.
Embora sejam os principais parâmetros para acompanhar a imunização, as coberturas escondem que um grupo de crianças acumula vulnerabilidades de toda ordem e está exposto a todos os agentes infecciosos imunopreveníveis, devido às desigualdades sociais, raciais e econômicas.
Para jogar luz sobre essa invisibilidade, organismos internacionais trabalham com o conceito de crianças “zero dose”. Em todo o mundo, mais de 14 milhões de crianças se enquadram nessa situação e são consideradas totalmente excluídas das ações e programas de imunização.
Apesar do nome, o conceito não significa necessariamente que essas crianças não receberam nenhuma dose de vacina. A primeira dose da vacina DTP, contra difteria, tétano e coqueluche, é tomada como referência para essa medição. Por ser uma vacina de baixo custo, com décadas de uso, adotada em praticamente todo o mundo e prescrita para o segundo mês de vida, os cientistas consideram que uma criança que não teve acesso à dose 1 da DTP no primeiro ano de vida é uma criança zero dose.
No Brasil, a imunização com DTP está incluída na vacina pentavalente, que adiciona as proteções contra a hepatite B e a bactéria haemophilus influenza B, causadora de um tipo de meningite. Apesar de ter o maior sistema público de saúde do mundo, o SUS, e o mais amplo programa gratuito de imunizações do mundo, o PNI, o país tem mais de 430 mil crianças nessa situação, sendo o oitavo do mundo em números absolutos.
Integrante do grupo consultivo de vacinas da Organização Mundial da Saúde (Sage/OMS), Cristiana Toscano explica que o indicador de zero doses é atualmente a principal medida da inequidade no acesso às vacinas. A Agenda de Imunizações de 2030, traçada globalmente com objetivos ambiciosos, pretende reduzir esse grupo de crianças pela metade até o fim da década.
“Esse dado significa que a criança não teve acesso à vacinação. Tem as subvacinadas, mas a zero dose é um marcador extremo de desigualdade. É por isso que essa é uma meta muito importante”, definiu, em apresentação na Jornada Nacional de Imunizações, realizada pela Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) em Florianópolis.
Ainda que tenha havido uma melhora em relação ao ano passado, quando havia 18 milhões de crianças zero dose, o mundo ainda está longe de cumprir essa meta. Em 2019, quando foi pactuada a agenda, eram quase 13 milhões de crianças sem a dose 1 da DTP, o que significa que os esforços feitos até agora não apenas não reduziram a desigualdade como ainda aumentou no período, marcado pela pandemia de covid-19.
Essas crianças não estão apenas em países de renda mais baixa, mas também em zonas de conflito e bolsões de pobreza em países de renda média e até renda alta. A chefe de saúde do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil, Luciana Phebo, conta que, no Brasil, elas também não estão necessariamente nos estados e municípios mais pobres, mas também nas periferias das cidades mais ricas do país.
“No Brasil, elas estão principalmente nos estados mais populosos, nas periferias. São Paulo e Rio de Janeiro, apesar de serem mais ricos, são também mais populosos. O número zero dose traz essa combinação de maior número, e por isso o Brasil está no ranking, mas também de países pobres e territórios pobres”.
Nesse contexto, a chefe de saúde do Unicef acrescenta que estar nos territórios mais empobrecidos é apenas uma das características que marcam essas crianças expostas a tal nível de exclusão. “Em todos os vieses que falam de empobrecimento e vulnerabilidade, não só dentro do Brasil, mas no mundo, você vai encontrar as crianças zero dose. Tem um viés claro de raça, etnia e pobreza”.
Se fosse um município, a cidade das crianças zero dose estaria entre as 60 mais populosas do país. Mesmo assim, o número atual de 430 mil representa uma melhora em relação a 2021, quando havia 710 mil crianças nessa situação. Luciana Phebo afirma que esse avanço já é reflexo da recuperação das coberturas vacinais, que ainda tem um longo caminho pela frente.
O problema da baixa na imunização não é exclusivo do Brasil, e os dados da Agenda de Imunização 2030 apontam que a velocidade com que as metas estão sendo perseguidas não tem sido suficiente para que o mundo alcance os objetivos da década.
Cristiana Toscano exemplifica que o número de vidas salvas pelas vacinas está aumentando em velocidade menor do que a necessária para chegar ao total de 50 milhões desejado para 2030. Entre essas milhões, muitas precisam ser as de crianças zero dose.
“As notícias não são boas. Surtos de doenças preveníveis por vacinas estão aumentando. Os surtos grandes de sarampo duplicaram em 12 meses, saindo de 16 e chegando a 33 entre maio de 2022 e maio de 2023. As lacunas da vacinação do sarampo estão causando um grande impacto no surgimento de novos surtos em todas as regiões”, lamenta a pesquisadora, que defende mais cooperação internacional. “A gente não consegue só cuidar da nossa casa, a gente precisa olhar para os nossos vizinhos e para todos para avançar”, afirma.
Agência Brasil