Imagine como seria dizer ao veículo a rota do dia e não precisar pegar no volante. Ir do ponto “A” ao “B” sem trocar de marcha e ter menos preocupação ao se distrair com alguma coisa durante o trajeto. Essas possibilidades dependem de avanços significativos na tecnologia de carros autônomos, que têm como base a inteligência artificial. Neste sentido, especialistas já debatem os prováveis benefícios, dentre eles, o enfrentamento a problemas do trânsito nas cidades, como acidentes e engarrafamentos.
A discussão sobre o uso de carros autônomos no Brasil e no mundo tem ganhado novos contornos através de debates políticos. No mês passado, foi divulgado que a equipe de transição do presidente eleito Donald Trump, nos Estados Unidos, quer priorizar as regras para a tecnologia. O mesmo tema foi debatido pela Câmara dos Deputados, em outubro.
Segundo o Coordenador-Geral de Regulação da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), Daniel Mariz, o tema vem sendo debatido pelo governo federal desde 2017. Porém, já existem projetos nas universidades do país bem antes disso e até no próprio mercado, dadas as devidas proporções.
“Veículos com sistema de frenagem de emergência, que detectam quando estão muito próximos de um obstáculo e, caso o condutor não reaja, realizam a frenagem automaticamente. Isso é uma tecnologia de automação e já representa um nível de autonomia que o veículo possui”, aponta. Ele também cita os carros que contam com sistemas de alerta de colisão traseira, por exemplo.
Porém, quando se fala em um carro onde o condutor e ocupantes entram e não é necessário intervenção no aspecto de direção, “muitos deles [têm funcionado] em ambientes controlados, por exemplo na área de mineração e na agricultura. E, aos poucos, isso vem vindo para o nosso trânsito mesmo. Temos produtos e projetos em andamento até mesmo nas universidades brasileiras”, afirma.
Como funciona o carro autônomo?
Cinco tecnologias fundamentais são básicas para o funcionamento do carro autônomo. São elas: inteligência artificial, central de comando (cerébro do carro), sensores, câmeras e GPS. Esses recursos vão fazer o veículo interpretar os caminhos a serem percorridos e como contornar obstáculos do dia a dia.
Existem também os chamados estágios de automação. Segundo a Administração Nacional de Segurança no Trânsito nas Rodovias (NHTSA), dos Estados Unidos, são seis níveis até a independência total da ação humana.
Projetos em destaque em universidades brasileiras
Atualmente, existem dois carros autônomos que apresentaram resultados significativos nas universidades. São eles: o Carina (Carro Robótico Inteligente para Navegação Autônoma), desenvolvido pela Universidade de São Paulo (USP) e a IARA (Intelligent Autonomous Robotic Automobile).
– Iara
Desenvolvido pelo Laboratório de Computação de Alto Desempenho (LCAD) da UFES, as pesquisas começaram em 2009 com o objetivo de entender como os humanos dirigem e adaptar isso a um veículo autônomo. O carro já percorreu trajetos como uma viagem de 74 km entre Vitória e Guarapari, no Espírito Santo, em 2017.
– Carina
O projeto começou em 2011 com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), como uma plataforma de pesquisa em sistemas embarcados. O veículo foi o primeiro da América Latina a ser testado de forma autônoma em vias urbanas, em São Carlos, em 2013. O carro já percorreu cerca de 30 km.
Impactos dos carros autônomos na mobilidade urbana
Um dos pontos a serem analisados neste aspecto é a grande quantidade de acidentes no Brasil. Uma pesquisa feita pela Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet) apontou que das dez principais causas dos acidentes de trânsito, nove foram por falha humana. Baseado no levantamento, especialistas apontam o veículo como uma possível solução para o enfrentamento de grande parte dos problemas, não somente dos acidentes, mas dos congestionamentos nas cidades.
“Do ponto de vista da segurança de tráfego o impacto será grande, para melhor. A tendência esperada é a redução dos acidentes de trânsito, que hoje são responsáveis por dezenas de milhares de mortes por ano no país, e outros tantos sequelados”, defende o professor Rubens Ramos, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, especialista em Mobilidade Urbana. Para ele, os carros autônomos não vão desafogar o trânsito nas cidades porque o número de veículos nas cidades não deverá diminuir.
“Uma viagem de carro se tornará mais positiva para os motoristas, que poderão fazer outra coisa em vez de dirigir. Por sua vez, o transporte de carga poderá aumentar muito a produtividade dos caminhões, pois bastará um motorista levar o caminhão até o início da estrada, liberar e outro motorista na outra ponta vai pegar. A tendência é que um motorista de caminhão possa operar 10 ou mais caminhões por dia, morando nas cidades. Da mesma forma, os ônibus rodoviários elétricos autônomos vão operar sem motoristas durante a viagem”, complementa.
Já Daniel Mariz crê na diminuição dos acidentes, mas com ressalvas. “A tecnologia reduz muito, melhora muito essa questão. O tempo de reação, o tempo de resposta dessa tecnologia é muito superior ao tempo de resposta do ser humano, obviamente, e isso vai contribuir significativamente para a redução de acidentes, mas não vai resolver todos os acidentes. Por isso se discute até a culpa de acidentes. Haverá um período de relação muito forte entre veículos autônomos com veículos que não são autônomos. O veículo autônomo pode às vezes não ser o ator de um sinistro de trânsito, mas vai ser aquele que vai sofrer a colisão”, afirma.
Segundo o professor Fernando Osório, um dos responsáveis pela implementação do projeto Carina, o fluxo do trânsito nas rodovias poderá ser mais fluido através das possibilidades do carro autônomo. “Imagina que você poderia colocar os caminhões a dirigir mais de noite do que de dia, para atrapalhar menos o trânsito, ou em horários específicos”, diz. Para ele, como a tecnologia consegue identificar melhor obstáculos no escuro, ao contrário dos seres humanos, “seria 100% seguro colocá-los de noite dirigindo, seja com névoa, chuva, neblina, poeira, com ou sem luz, o caminhão consegue dirigir. Isso daria um fluxo muito melhor em rodovias”, conta.
“Carro autônomo é uma coisa muito inteligente do ponto de vista de logística. Por exemplo, você sai de carro e vai para algum lugar no centro da cidade e fica procurando uma vaga. Fica circulando lá, andando, andando, andando até achar uma vaga para estacionar. O carro pode te deixar e ele vai embora afastado para uma zona que não tenha problema de estacionamento. Você elimina o fluxo que fica ali procurando vaga”, complementa.
Desafios da implementação do carro autônomo no Brasil
Atualmente, os carros autônomos só podem atuar em ambientes privados. Isso acontece devido a legislação de trânsito. Alguns dos entraves neste sentido são os seguintes artigos do Código de Trânsito Brasileiro (CTB):
- Artigo 28: O condutor deverá, a todo momento, ter domínio de seu veículo, dirigindo-o com atenção e cuidados indispensáveis à segurança do trânsito.
- Artigo 252: O motorista deve manter as duas mãos no volante.
Outras questão a ser levantada é a infraestrutura viária. “Nas cidades, vias com pavimento defeituoso, sem sinalização adequada, com buracos de tampas de inspeção, isso tudo é um
complicador grave para um carro autônomo. A IA é inteligente, mas ainda não alcançou essa capacidade que nós, brasileiros, de lidarmos com os buracos e defeitos das vias, com os erros de projeto viário praticados pelas prefeituras. Então, teremos que fazer um upgrade nas ruas e avenidas para poder termos carros autônomos”, aponta Rubens Ramos.
Daniel Mariz ainda afirma que, para funcionar em sua totalidade, os veículos precisam de uma rede de comunicação rápida, à exemplo do 5G, para trocar informações entre si e com os equipamentos de trânsito, como os semáforos. “Essa rede precisa ser implantada, estar estável no país, para que haja comunicação”, afirma.
Debate no Congresso
Em outubro, a Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados discutiu o Projeto de Lei 1317/23, do deputado Alberto Fraga (PL-DF) – que regulamenta o uso de veículos autônomos, o papel do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) e a responsabilidade por acidentes ou infrações.
Atualmente, a lei se encontra em análise. O deputado Alberto Fraga está otimista com o projeto, mas aponta a necessidade de aprimoramento, cuja responsabilidade é do colega de partido, o deputado Antonio Carlos Rodrigues (PL-SP), relator da medida. “A tecnologia embarcada dos veículos avança rapidamente, especialmente a autonomia de condução; contudo, a legislação que regula essa matéria ainda é muito incipiente. Nesse sentido, ou nesse contexto, buscou-se apresentar uma proposta, um primeiro passo, por meio de um projeto de lei que altera o Código de Trânsito Brasileiro, de inserir no ordenamento jurídico algum avanço que possa abarcar esse avanço tecnológico”, afirma.
“A sociedade demanda, como conjunto de consumidores de bens e serviços, que o parlamento avance na construção de arcabouço legal que garanta a segurança jurídica, além da segurança viária. Em outra linha, o país não pode deixar de se beneficiar das vantagens econômicas advindas dos avanços tecnológicos, isso se reflete em segurança geral, em qualidade de vida e em mais empregos especializados”, defende.
Daniel Mariz aponta que, para haver uma regulamentação, é necessário pensar como a tecnologia vai se comportar, pois já houve acidentes com ela em outros países. “Quem vai operar o veículo? Ele precisa ser habilitado? Esse é um tema que precisa ser definido”, diz. Questões como uso de celular e ingestão de bebidas alcoólicas também são pontos a serem discutidos na avaliação dele. “Porque você não está controlando o veículo, mas se em algum momento eu precisar controlar, ou seja, o veículo entrou em pane e tomou uma decisão inesperada e for preciso controlar, eu vou poder estar num grau de distração tal que vai levar tempo para reagir a essa situação?”, complementa.
Já Fernando Osório defende que a lei exija a implementação de uma tecnologia de registro de dados, à exemplo da caixa preta do avião, para apontar os possíveis responsáveis em acidentes. “Porque aí a gente sabe se foi a pessoa que se jogou, o carro falhou porque a câmera parou de funcionar e ele foi mal feito, se bateu em alguma coisa, entre outras situações”, afirma.
“Por ser [um projeto] inovador e por haver a necessidade de regular o tema, até mesmo pelos prejuízos econômicos decorrentes de ausência de legislação, creio, sim, que a matéria avançará”, crê Alberto Fraga.
Por William Medeiros