Sessenta e quatro anos separam a chegada da boneca Barbie às prateleiras de lojas e o lançamento do filme que estreia nos cinemas nesta semana. Neste longo período, a boneca mais famosa do mundo foi responsável por reforçar imaginários, consensos e estereótipos, além de ser alvo de contestação nas últimas décadas.
De alguma forma, tudo isso está presente no aguardado longa-metragem de Greta Gerwig, diretora indicada ao Oscar com “Lady Bird” (2017, Melhor Direção) e “Adoráveis Mulheres” (2019, Melhor Roteiro Adaptado), com Margot Robbie (“Eu, Tonya”) e Ryan Gosling (“La La Land – Cantando Estações”).
Desde as primeiras imagens divulgadas, o projeto vem causando um grande frisson pop por toda a carga geracional envolvida, além do elenco estrelar e da trilha-sonora com nomes de peso da indústria musical – Nicki Minaj, Dua Lipa e Billie Elish são alguns exemplos.
O filme ainda desperta interesse pela sua própria singularidade. Afinal, o que deseja um filme da Barbie que não é uma animação? E que não é necessariamente para crianças (a classificação indicativa é 12 anos)? O que esperar Greta Gerwig, conhecida por uma direção mais autoral, em um blockbuster desta dimensão?
“Barbie” é, na verdade, uma grande sátira sobre os papéis de gênero no mundo – com algum espaço para uma crise existencial sobre a superficialidade.
O filme se passa na BarbieLand, um mundo paralelo onde vivem as bonecas e os bonecos Ken. Lá, cada Barbie desempenha uma função e profissão, seguindo a premissa comercial do brinquedo na vida real. Margot Robbie encarna uma Barbie “estereotipada” – ou seja, aquela Barbie “comum” que imaginamos ao pensar na boneca.
Essa esfera de artificialidade é quebrada quando Robbie passa a enfrentar dilemas humanos, como refletir sobre a morte e “sofrer” com o aparecimento de estrias. Identificada com defeito, a boneca descobre que precisa enfrentar um desafio: sair para o mundo real e resolver o problema de sua dona, que estaria causando essa quebra em seu mundo perfeito.
Barbie vai até a Califórnia acompanhada de Ken, quando o filme cria uma sensação de “saída da Matrix”. Enquanto a personagem feminina sente olhares de objetificação, o seu parceiro masculino sente olhares de admiração – mesmo que parte deles sejam fruto de uma certa autoestima masculina.
Esse é o primeiro detalhe de uma série de acontecimentos que tornam “Barbie” uma grande alegoria sobre as discrepância entre os papéis das mulheres e dos homens na sociedade, reforçando a predominância masculina no mundo real – desde as relações cotidianas até os cargos de poder.
Nem mesmo a Mattel, marca responsável pela Barbie, foge do tom ácido. Os seus executivos são representados como homens pouco inteligentes e puxa-sacos. Contudo, se engana quem achou que o roteiro se limitaria às experiências da Barbie no mundo real. Vai bem além disso.
O longa também é cheio de referência à cultura pop e à própria história da boneca, o que funciona para espectadores mais antenados. Algumas piadas podem sequer serem entendidas por espectadores mais jovens ou crianças. Em determinada cena, inclusive, a “Barbie Estranha” chega a sugerir que deseja o pênis do Ken de Ryan Gosling – o que é até ousado, tendo em vista que é um filme da Barbie.
Apesar do forte tom comercial, ainda dá para perceber que estamos vendo um filme de Greta Gerwig, diretora conhecida por comédias dramáticas que capturam a complexidade da feminilidade de uma forma original – embora, nesse caso, seja quase inevitável cair em alguns clichês.
O inegável tom feminista existe pela presença dessa diretora mulher – além da própria Margot Robbie como produtora. Esse longa é produto de mudanças e questionamentos da sociedade nos últimos anos e não existiria sem esse contexto.
A produção flerta com a diversidade, tendo no elenco uma Barbie gordinha, Barbies negras (uma delas sendo a Barbie Presidente) e até uma cadeirante em uma cena de dança. Contudo, ele também não tem a intenção de libertar a boneca de todo o seu histórico de pressão estética sobre crianças no mundo. O filme discute bem isso com limitações, embora a Barbie seja a mocinha no final das contas – não poderia ser diferente, já que a própria Mattel está envolvida.
A direção aposta num caminho que tenta flertar com o arthouse ao mesmo tempo em que se assume mainstream. O longa busca esse equilíbrio: tenta agradar espectadores mais críticos, sem abandonar aqueles que querem ver um legítimo filme da Barbie, com muito rosa, looks reais da boneca, referências diretas aos brinquedos e edições limitadas.
É necessário destacar como Margot Robbie é fundamental nesse filme. Para muito além de sua aparência física, a atriz consegue incorporar exatamente aquilo o que imaginamos como Barbie. Ela surpreende quando a boneca vai adquirindo consciência sobre o mundo real, em uma crise existencial para lá de curiosa. Por que a Barbie não empoderou todas as mulheres? Por que o mundo ainda é dos homens e não das Barbies?
Não é uma tarefa fácil atualizar a Barbie, com seus fascínios e problemáticas, para os dias atuais. É possível concordar que Gerwig e Robbie conseguiram.
SBT Nordeste (JC)